Poema de Jefferson Bessa

I
nem preciso mais comprar folhas
nem encher mil sacos de lixo
nem amassar papel
ah, nem gavetas para guardar
guardo em gravações

ligar
desligar a folha
toda manhã, toda noite
clicar desclicar
o poema sem rasuras

tenho tido muito cansaço
muita tontura
bom que não preciso comprar folhas
nem preciso lembrar delas
tenho assim menos gasto

me sinto confortado
este verso não ocupará
estantes armários mundos

é certo: se desocupa muito espaço
para enchê-lo ainda mais de arquivos vãos

II

lembro de quantas gavetas li
na guarda dos versos.
as gavetas foram as guardiãs
sempre acordadas e ainda firmes
apenas não a tocamos mais

abrir um arquivo e ver
não os arquivos de biblioteca
não os arquivos de meu quarto
de baú estante gaveta armário
nada disso, abrir um arquivo

arquivo ainda do que se faz.
mas jamais os vejo
como coisa fechada
sem ar, num claustro
como tudo que vive nos armários

continuo guardando
mas nunca guardado.
ficarei à vista até quando?
não sei, mas ficarei gravado
que é uma forma de ficar guardado?

certo é que nem tenho mais que estar
nas poeiras dos velhos papéis
empoeirados manchados
amarelecidos mofados
pálidos antigos



III


sem minha letra
sem minha assinatura
ainda escrevo.
como então sou nesta folha?
certamente com menos do que faria meu

sem rascunhos, sem desenhos
minha letra não é só impressa
outras marcas faço no papel
a face da folha será ainda corpo úmido


IV

com a queda da luz
tive que ligar de novo
ainda tentei pegar um papel
nem sei onde os coloquei
encontrei quando a luz voltou

mas falava do que me apareceu hoje...
mas se apagou o que poderia ter aparecido
como diversos
e muitos versos
já desapareceram

V

temos que ainda guardar
como as antigas salvações
salvar um verso - e dizem que
um verso não salva
mas temos que salvá-lo

perder salvar recuperar
vitoriosos ofícios do homem
herói dos perigos da perdição
da morte, das ruínas
sinto essa tontura ainda

pode ainda tudo queimar
pifar na fogueira elétrica
são os males involuntários
ocasionais, não importo
se perder o que guardo

o mundo todo é um escritório
preservações
deveres
obrigações
fechar guardar abrir
ordem originais assinaturas

mas todas as minhas culpas
deixarei no mundo, que se tornou cartório
lá é o lugar!

comigo eu não carrego nada.
deixarei o fardo para meu primo:
é escrivão, vai registrar

Ele - Francisco - disse que ficarei
por enquanto nesta outra gaveta

VI

de repente o papel
se fechou e se abriu
sozinho. Fácil = pensei
na salvação novamente.
quero só me salvar dela.

clicar botões setas
vou apagar a folha
quero uma nova – jogar
na lixeira – apagar de vez.
essa tontura me dá voltas

ligar,
desligar os dedos
as mãos o poema
a luz a letra
ajustar as cores da tela

e ainda o sono desce
como uma nave pousa.

quantos já ficaram sem tinta?
sem lápis?
e aqui estou sem luz!


VII
poema sempre limpo?
sem rabisco
sem rasura
sem rascunho
sem letra
sem assinatura
poema sempre limpo

os olhos ainda ardem
minha letra é outra


VIII


hoje vi um caderno
uma letra
em vídeo em movimento.
e toda saudade ainda salgada
de quem o folheia.
no fim do caderno,
uma grande assinatura.
a validade desta marca
artesanal

levaria para mim o dia inteiro:
o tempo de outro poema!

IX

conseguirei uma firma
fixa, digital, colável
a todos os textos.

X

amigo, guardarei sua mensagem
na caixa sem poeira
da entrada, dos arquivos
fingirei que nunca a li
deixarei nela a marca de "não lida"


XI
uma dia todo este poema se torna uma outra forma



XII


que nau ainda me segue?
mas nado feito peixe


que nau ainda comanda?
mas nado e salto à contraonda
sem a ordem de almirantes


para isso, sejamos peixes
ágeis, saltemos rápidos
ilesos ao chicote dos cabos


sejamos de altos pulos
peixes velozes.
deixemos ver ao céu
as embarcações aéreas


sejamos peixes
interligados
peixes navegantes
sem naves, navios
mas peixes de ver
de pular mais alto
que qualquer mastro


XIII


como à beira mar
à beira tela nós sentamos


depois de mais tantos navios
chegou mais uma tripulação
mas no ar nada se viu


ninguém quis ver as micro-ondas
e o ninguém ficou a ver navios

16 comentários:

  1. A PRIMEIRA A SEGUIR E COMENTAR...
    Quanta honra!

    Só queria dizer que, às vezes, me bate a vontade do papel. Hoje, escrevo mais assim... usando nosso querido - como diria os espanhóis - ordenador, entretanto, há em mim a vontatde do papel...

    ps... Conheço, muitas vezes, meus livros pelo cheiro...

    Beijos,
    Ry.

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  2. SEU POEMA ESTÁ IMERSO NESSAS ONDAS DO FUNDO, QUE CONFUNDEM, NÃO SÃO GAVETAS, SÃO MARCAS DÁGUA, OU DUNAS DE UM OUTRO MUNDO, OU GRAVAÇÕES, ONDE O SEU POEMA DORME, GRAVADO, MAS SOLTO, ENGAVETADO, MAS AÉREO, EU SEI QUE ESSA NOVA FASE DE SUA POESIA VAI SER GRAVADA NAS ONDAS DO FUNDO DA MEMÓRIA DE SEUS LEITORES, EM CORES, LEITORES EM PRETO AZUL E VERMELHAS ONDAS, CONCÊNTRICAS, FECUNDAS, POSTADAS, GRAVADAS, ÁGUA, ÁGUA E AREIA, ÁGUA, TINTA DE COR

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  3. ... o poema contínuo que se vai revelando pela luz que o atravessa...
    (...)

    beijos,


    mariah

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  4. Que beleza, Bessa!

    Este poema me toca profundamente. Ainda insisto no velho papel, pois quase sempre escrevo longe "daqui", na rua, ou quando acabo de me deitar. Depois passo "a limpo". Mas as gavetas estão vazias e os arquivos cheios. É mesmo uma sensação estranha. E esta tontura, e este cansaço... Como descreve bem o que sinto.

    Muito, muito bom!

    Abraços!

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  5. desfolhar

    os

    incêndios

    do mundo


    [interior]



    *folheio
    um
    abraço*

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  6. Muito bom! Uma narrativa completa....um movimento constante nas suas palavras. Gosto muito do seu fluxo, vem de dentro. beijo

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  7. Aqui, ali, ainda recolho nas folhas, poemas inacabados e histórias surgem de palavras perdidas em algumas linhas.
    Inspirações desfolhadas neste belo texto.

    abraços

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  8. Bom mesmo é saber que, em cada tempo,pode se reinventar um jeito novo de se fazer poesia. Na folha ou na telinha, Viva a poesia!

    Bom passar por aqui.

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  9. Fez-me lembrar de um dos primeiros poemas que publiquei em minha confeitaria poética: "Versos perdidos".

    Deixo o convite pra que me visite! : )

    Beijo,
    doce de lira

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  10. A escrita antigamete era dependente da celulose; era um só a escrita, a letra e o autor. Não que exista menos autenticidade envolvida nessa processo tecnológico que se desenvolve agora; os blgs são experiêcias boas dessa fase. É que a letra de cada um é tão humana quanto uma parte do corpo, é única, é nossa, é a certeza de nossa essência. A cada gaveta aberta, com rabiscos no canto de uma folha amarelada, nos deparamos com pensamentos já fugidos da mente e que reencontrados, nos fazem voltar a ser o que fomos e o que somos, mas esquecemos. Uma gaveta de sonhos. Lembranças.Futuros. Sabe, eu não tenho nenhuma caixa de entrada. Aliás, tenho, e ali fica parte da minha vida marcada como não lida. É eu sou na verdade uma gaveta. Bom me descobrir !
    Belo post.
    Bom finde, beijos!

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  11. Uma forma inesquecível na alma de quem sentiu!

    Beijos, poeta.

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  12. Lindos versos..espalhados no solo fértil dos sentimentos...amei!!!
    abraços carinhosos a ti nesse começo de ano.

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  13. hoje mais uma vez
    reli o seu Poema
    dia virá em que a Poética
    se dirá por esses versos

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